O uso dos Salmos no Novo Testamento

Chegamos ao término destes estudos, mas nem por sombras ao fim de tudo o que há para dizer acerca do livro dos Salmos. Aliás, a este propósito, recordo-me de um professor que conheci há alguns anos e que, sempre que terminava uma classe sobre o livro de Isaías sem que fosse possível chegar ao fim da matéria, dizia que estava satisfeito, pois não queria que ninguém saísse dali a pensar que tinha adquirido um entendimento completo do livro… Acho que isto se aplica especialmente ao caso dos Salmos, pois são orações e louvores que nos podem acompanhar uma vida inteira e cuja compreensão dos mesmos se vai aprofundando à medida que as nossas circunstâncias se vão alterando.

Guardamos para esta última semana aquilo que designamos por ´uso dos Salmos no Novo Testamento`. Quando os estudiosos falam do tema do uso do Antigo Testamento (AT) no Novo Testamento (NT), eles distinguem em geral três categorias básicas: “Citações (directas ou indirectas), alusões e ecos“. É claro que as citações são as mais fáceis de identificar (embora existam muitas vezes debates sobre qual a exacta versão que o autor está a usar), sendo que as alusões e os ecos já são passíveis de múltiplas interpretações. Mas, se nos ativermos apenas às citações, podemos constatar que das mais de duas centenas de citações directas do AT no NT cerca de 40% provêm do livro dos Salmos, vindo o livro de Isaías logo a seguir. Tal profusão de citações por si só, sem contar com as inúmeras alusões e ecos, é suficiente para demonstrar a importância dos Salmos para os autores do NT e seria impossível enumerar aqui todas estas ocasiões.

O próprio Jesus citou e referiu os salmos como alguém que estava habituado a orar e ponderar sobre eles. Paulo referiu-se a vários salmos e ligou-os de forma bastante complexa para apoiar a sua mensagem. Mas de onde vinha a influência deste livro na mente dos autores do NT? Antes mesmo de procurarmos qualquer outra explicação, parece-nos que o principal motivo advinha do facto de eles, bem como os judeus do primeiro século em geral, viverem imersos nestas orações e cânticos de louvor. Na opinião de N.T.Wright, eles cantavam e oravam os salmos diariamente, permitindo que eles moldassem o seu carácter, formassem a sua visão do mundo, enquadrassem as suas leituras das restantes Escrituras e não menos importante, que alimentassem as suas vidas e as suas esperanças depositadas num Deus Criador, mesmo quando tudo à sua volta parecia escuro e infrutífero.

Jesus e os seus primeiros seguidores conheciam os salmos muito bem e não só tiveram a sua visão do mundo delineada por eles, como também trouxeram novas perspectivas para a sua interpretação.

Como tal, ao analisar a utilização que os autores do NT fazem dos salmos, não se trata apenas de afirmar que eles procuravam neste livro textos que contivessem um carácter preditivo e que, como tal, pudessem ser citados em seu apoio – aquilo que se designa por vezes como “textos-prova” (embora estejamos conscientes de passagens como Lucas 24:44) – mas, também, da capacidade que tinham de interpretar todas as suas circunstâncias à luz destas mesmas orações e cânticos, porque eles eram uma presença constante nas suas vidas e neles encontravam a linguagem para expressar o que de outra forma lhes seria difícil.

Um outro ponto que nos parece importante mencionar, é o facto de, como vimos em semanas anteriores, David ser uma das principais figuras do livro dos Salmos. Ora David, como rei terreno, antecipa o seu descendente, maior do que ele próprio, o Rei celestial. É claro que aquele que vem depois tem de ser maior do que aquele que o precedeu por forma a que a história do reino de Deus possa avançar.

Os salmos apresentavam o rei ao povo e estavam repletos de expectativas messiânicas, mas à medida que os reis se sucediam na história de Israel e de Judá, nenhum parecia estar à altura destes ideais. Daí que do ponto de vista do NT os salmos sirvam de fonte privilegiada para explicar quem é o Messias e o que ele representa. A glória e os sofrimentos de David tipificam por vezes os de Jesus, e em certas ocasiões a linguagem usada por David transcende a sua própria experiência e encontra o seu cumprimento pleno em Jesus Cristo (p.ex. no Salmo 22).

David também antecipa o reino do seu Senhor no Salmo 110:1: “Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha mão direita, até que ponha os teus inimigos por estrado dos teus pés”. Relembremos que do ponto de vista do AT era impensável, mesmo metaforicamente, descrever um ser humano como sentado à direita de Deus. É por isso interessante que, quando confrontados pelo próprio Jesus com as palavras deste salmo (Mat. 22: 41-46), nenhum dos seus interlocutores tivesse qualquer tipo de resposta para lhe dar.

De alguma forma, quando penso nisto, vêm-me à mente as palavras de Deus ao profeta Habacuque, quando este, numa linguagem típica dos salmos de lamento, perguntou: “Por quanto tempo mais Senhor…”, ao que Ele lhe respondeu “Olhai para as nações e vede, e maravilhai-vos e admirai-vos, porque realizarei em vossos dias uma obra que vós não creríeis mesmo que vos fosse contada” (Hab 1:5). De facto, a resposta que Deus deu ao profeta e aquilo que ela implicava no imediato talvez não fosse o que ele esperava, pois o horizonte de Deus era mais vasto, mas mesmo para nós, nos dias de hoje, o poder e a graça de Deus podem ultrapassar os nossos preconceitos mais enraizados.

Regressando a N.T. Wright e ao seu livro devocional sobre o Saltério, vemos que ele sugere que todos devíamos permitir que esta colecção de hinos de louvor, colocada à nossa disposição por Deus, fosse um meio de transformação pessoal e comunal, de renovação e de crescimento. Deus continua a renovar a sua criação e o seu povo, e uma das formas por Ele utilizadas para o fazer é pelo uso quotidiano do livro dos Salmos.

Gostaríamos de finalizar com uma oração inspirada num salmo e dada a atenção especial que demos aos salmos de lamento durante estes estudos poderíamos ter escolhido aquele que, para muitos cristãos, é o salmo de lamento por excelência, o salmo 22. Embora não seja de mais relembrar que mesmo este chega ao final com uma afirmação de vitória e louvor e não de desespero.

Contudo, optámos por terminar com um salmo de confiança e provavelmente o salmo mais emblemático de todos para muitos crentes. Não é citado diretamente no NT, mas é aludido em muitas passagens, e em nossa opinião, existem ecos dele em Marcos 6: 30-44. Referimo-nos ao salmo 23.

Foi um prazer poder estar em contacto convosco ao longo destas semanas mesmo que em circunstâncias tão diferentes. Que Deus vos abençoe e até um dia destes, se Deus quiser.

Salmo 23

1 Salmo da coleção de David.
O SENHOR é o meu pastor,
    nada me faltará.

Obrigada, Senhor, por seres o meu Pastor. Obrigada por eu ser uma das ovelhinhas do Teu rebanho. Que bênção é saber que Tu cuidas de mim, que Tu me guias pelos caminhos mais seguros e abundantes, que vigias o meu andar e que me proteges do Mal.

Pastoreia também aqueles que me rodeiam – o meu marido/a minha esposa, os meus filhos, netos, os meus irmãos, os meus amigos, que tanto precisam de um Pastor.

Tu és o meu pastor, nada me falta! É verdade, Senhor, Tu me tens dado o pão de cada dia. Às vezes, penso que me falta isto ou aquilo, que seria mais feliz se tivesse isto ou aquiloutro, mas na realidade tenho mais que o suficiente para o dia de hoje.

Ainda assim, há algumas coisas que te peço… Restaura a saúde dos meus queridos… Consola os que estão abatidos… Enche-me de amor e paciência no trato com os meus filhos, com os meus colegas de trabalho, com o meu próximo.

Pastoreia-nos, Senhor!

2 Deitar-me faz em verdes pastos,
    guia-me mansamente a águas tranquilas,

No meio dos meus muitos afazeres, ensina-me a descansar…
fisicamente – a tirar tempo para dormir o suficiente, a abrandar e a apreciar com tranquilidade de cada momento, a respeitar o dia de descanso
emocionalmente – encontrando o meu próprio ritmo, escolhendo as atitudes e os sentimentos que me trazem harmonia em vez daqueles que me desgastam e azedam
espiritualmente – aquietando-me na Tua presença para contemplar a beleza da Tua criação, para ler a Tua Palavra, para conversar contigo, para servir o meu próximo

Alimenta-me, Senhor, nos Teus verdes pastos e refresca-me com os teus rios de água viva! Seguir-Te-ei, Bom Pastor, para os lugares que me conduzires, pois Tu sabes o que necessito, melhor do que eu própria.

3 refrigera a minha alma
    Guia-me por caminhos de justiça,
        por amor do seu nome.

Sim, conforta e refrigera a minha alma. Só Tu conheces o meu íntimo. Por vezes, estou tão vazia, tão seca… Preciso de Ti. Precisamos todos.

Restaura também a alma daqueles que se perderam do rebanho. Volta a encaminhá-los para os Teus caminhos, que são caminhos justos, retos, de paz e de esperança.

Somos apenas ovelhas, precisamos de escutar a Tua voz clara mostrando-nos para onde ir.

4 Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte,
    não temerei mal algum,
        porque tu estás comigo;
a tua vara e o teu cajado,
    me consolam.

Senhor, Tu nunca prometeste que a vida seria só facilidades, mas prometeste que estarias connosco sempre!

Bom Pastor, tenho experimentado realmente que a vida tem os seus vales e, por vezes são bem sombrios. Rogo-Te que me concedas a Tua paz, que excede todo o entendimento. Que eu me mantenha calma a meio às tempestades, sem medo, porque sei que Tu estás comigo! Que em vez de me focar nas minhas circunstâncias, eu reconheça que Tu não me abandonaste e saiba que o Sol brilhará novamente.

Liberta-me dos meus medos… aqui estão eles, coloco-os aos Teus pés, lanço todas as minhas ansiedades sobre Ti, pois és Tu que mo pedes.

Agradeço-Te, pois contigo, estou segura, mesmo no vale da sombra da morte, mesmo quando a doença bate à porta, mesmo quando fico sozinha, mesmo quando tudo o que tinha por garantido se vai… Santo Espírito Consolador, a Tua voz me apazigua, a Tua vara corrige o meu rumo e o Teu cajado mantém-me de pé!

5 Preparas uma mesa perante mim
    na presença dos meus inimigos.
Unges a minha cabeça com óleo;
    o meu cálice transborda.

És verdadeiramente incrível, cheio de bondade e amor, pois não só me guias, me guardas, provês aquilo de que preciso e me consolas, como ainda preparas uma festa para mim! Tal como o pai na parábola do filho pródigo, tu recebes cada uma das tuas ovelhinhas no Teu regaço e celebras com um banquete farto e delicioso! Unges a minha cabeça com o Teu Espírito. A minha taça transborda…

Muito, muito obrigada, meu Pai, por este amor tão extravagante e incondicional! E que este Teu amor transborde também da minha vida para a vida daqueles que me rodeiam.

6 Certamente que a tua bondade e o teu amor me seguirão
    todos os dias da minha vida,
e habitarei na casa do SENHOR
    por longos dias.

Que seríamos nós sem o teu amor, sem o teu perdão, sem a tua misericórdia?

Graças Te dou pela Tua bondade e pela Tua misericórdia que me seguem (que me perseguem…) todos os dias da minha vida.

Graças Te dou também por Jesus, que pelo Seu sacrifício na cruz do Calvário, me reconciliou contigo e me deu esta certeza de que habitarei contigo por toda a eternidade. Obrigada, meu Bom Pastor, por esta dádiva e por esta graça!

É em nome de Jesus, que eu oro.

Amém.

José e Marta Pego e Pinto

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