A Poesia nos Salmos

Aproximamo-nos do fim destes estudos e, como prometido, gostaríamos hoje de vos deixar com uma breve menção ao tema da poesia na Bíblia em geral e no Livro dos Salmos em particular, embora, dada a vastidão do tema e as nossas limitações relativamente ao mesmo, tenha de ser algo muito pela rama. Esperamos, no entanto, que desperte em vós o interesse por aprofundar alguns destes aspectos.

Assim sendo, optamos por falar-vos de dois pontos: a diversidade de géneros de poesia na Bíblia e aquilo que é uma das características mais marcantes da poesia hebraica antiga, o “paralelismo”.

Existe muita poesia na Bíblia. De acordo com alguns estudiosos, cerca de 30% do Antigo Testamento foi composto sob a forma de poesia e, dentro destes 30%, existem diferentes géneros de poesia – poesia nos salmos, nos profetas, nos livros de sabedoria, no Cântico dos Cânticos, no livro de Jó, nos livros históricos, etc. De facto, uma das falhas mais comuns no entendimento da poesia bíblica é a incapacidade de distinguir suficientemente entre os seus diferentes géneros.

Por exemplo, a maioria dos profetas escreveu belas poesias (p.ex. partes do livro de Isaías, de Jeremias, de Amós entre outros) e grande parte dos discursos de Deus na Bíblia transmitidos pelos profetas aparece em forma poética. Será que o recurso a este veículo poético tinha unicamente por fim motivos retóricos ou tornar a mensagem mais memorável?

Na vasta maioria dos casos de poesia nos livros proféticos, em termos formais, não é o profeta que fala, mas sim Deus que o faz através do profeta (uma das possíveis etimologias do termo profeta em hebraico “navi” é exactamente “porta-voz”), o que pode levantar a questão: Será que os profetas ouviam Deus a falar através de poesia ou escolheram linguagem poética para “traduzir” a mensagem divina?

A escolha da poesia como meio de transmissão de uma mensagem para Jó, para o salmista ou para Isaías, só para mencionar alguns exemplos, não foi simplesmente para dar um maior peso e dignidade à mesma, mas uma forma de destapar ou descobrir sentidos, que de outra maneira não seria possível transmitir. São autênticas obras de arte verbal, que têm perdurado ao longo de gerações. Podemos dizer que os poetas bíblicos gostam de nos convidar a fazer conexões entre as diferentes ideias expostas no poema, as quais vão abrindo camadas de significado mais profundas (a este respeito convém dizer que a narrativa bíblica, através da prosa, também o faz por outras formas).

Igualmente, em algumas narrativas bíblicas há por vezes uma pausa na história, enquanto os personagens irrompem num canto poético (p. ex., Êxodo 15 e o Cântico de Moisés e Miriam, o Cântico de Débora em Juízes 5: 2-31; o Cântico de Ana em I Sam 2: 1-10, Jonas em Jonas 2: 1-9, etc.) Os dois primeiros exemplos de poesia hebraica formalmente definida, que nos surgem no texto bíblico, encontram-se respetivamente em: Génesis 2:23 e Génesis 4:23-24.

Robert Alter, que embora seja por formação um professor de hebraico e literatura comparada e não um teólogo, tem dedicado grande parte da sua vida ao estudo e tradução da Bíblia e escreveu nos anos 80 do séc XX dois livros seminais – “A Arte da Narrativa Bíblica” e “A Arte da Poesia Bíblica”. Ele é de opinião que, em muitos casos, entendimentos teológicos e históricos e inclusive julgamentos estéticos fizeram com que gerações de leitores não pudessem apreciar verdadeiramente a grande quantidade de poesia presente na Bíblia.

Pese embora as dificuldades inerentes a esta área de estudo – e não são poucas – tentar ter um melhor entendimento de como funciona a poesia bíblica poderá ajudar-nos a perceber melhor os tipos de sentido que se pretende transmitir com ela, bem como o tipo de representações da realidade humana e divina tornadas possíveis através deste veículo expressivo. Como diz a professora da Bíblia Adele Berlin: “Temos primeiro de entender como é que um texto significa antes de podermos saber o que significa”.

Faz parte da relação de Deus com o ser humano a comunicação através de formas literárias com as quais as pessoas estejam familiarizadas e pode dizer-se que a poesia inflama a nossa imaginação através da arte da palavra.

E como é que os poetas da Bíblia trabalham? Ao contrário de outros sistemas poéticos da antiguidade, a poesia hebraica caracteriza-se pela ausência de rima e mesmo a compreensão da métrica, se é que ela existe, tem escapado aos estudiosos ao longo dos séculos. A poesia bíblica usa sobretudo versos livres e tem uma ordem, mas é um tipo diferente de ordem.

O que parece ser uma das suas principais características é o que se costuma designar por paralelismo semântico. A chamada de atenção pelo bispo anglicano Robert Lowth, em meados do século XVIII, para este recurso expressivo na poesia hebraica foi um passo importante na direcção de se poder discernir mais claramente as estruturas originais de muitos dos poemas. Como alguém já disse, o paralelismo corresponde a uma espécie de “rima de ideias”.

Partamos do princípio que a unidade básica de cada poema é a linha e que muitas linhas são colocadas juntas (sob certas características formais/regras não necessariamente rígidas) para compor um poema. Estes poemas estão basicamente estruturados em pares (paralelismo) – 2 curtas linhas cuidadosamente escritas e colocadas lado a lado (em alguns casos também pode haver tríades de linhas). De uma forma geral, a 1ª linha faz a afirmação básica e a 2ª linha desenvolve-a sob certa perspectiva.

Isto implica que, na nossa leitura dos textos poéticos e dos salmos que recorrem a este mecanismo, devamos estar atentos ao ritmo que nos é sugerido pelo autor: lê-se a 1ª linha e faz-se uma pausa, seguindo-se então a leitura da 2ª linha que joga com o sentido da 1ª linha. Tal como o teólogo Von Rad sugeriu, é quase como se a verdade que o poeta pretende transmitir através desta forma tivesse de ser ouvida “estereofonicamente” (num ouvido e, depois, no outro). Alguns exemplos se seguirão para ajudar a compreender melhor o que queremos dizer.

O paralelismo parece sobreviver bem à tradução para outras línguas, o que nem sempre é o caso com algumas das outras características da poesia hebraica, desde que a tradução seja feita procurando realçá-lo.

Por uma questão de simplicidade na exposição vamos socorrer-nos apenas dos 3 tipos de paralelismo básico identificados por Robert Lowth (mesmo que desde o seu tempo mais trabalho adicional já tenha sido feito a este respeito).

  1. Paralelismo sinónimo – em que a 2ª linha do verso visa completar o pensamento exposto na 1ª.
    Por exemplo no Salmo 2:1: “Por que conspiram as nações? E os povos murmuram coisas vãs?”
  2. Paralelismo sintético – em que a 2ª linha visa aprofundar o pensamento elaborado na 1ª com diferentes imagens e palavras, como se através de um telescópio pudéssemos ver a ideia expressa na 1ª linha com maior nitidez e clareza na 2ª.
    Por exemplo no Salmo 1:2: “Antes tem o seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite.”
  3. Paralelismo antitético – em que a 2ª linha procura contrastar a ideia exposta na 1ª (só a título de curiosidade, fica a nota que grande parte do livro de Provérbios foi escrito usando este tipo de paralelismo)
    Por exemplo no Salmo 1:6: “Pois o Senhor conhece o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios perecerá”.

O salmo 51, que é o nosso salmo escolhido para hoje, está cheio de exemplos destes paralelismos. Quando nos habituamos a este efeito e à intenção que parece estar na mente do salmista, percebemos que este nos força a ler pausadamente, num ritmo próprio e a meditar no significado de tudo, olhando para cada ideia de vários ângulos. É como se cada linha nos oferecesse um diferente vislumbre da mesma realidade.
Como já foi sugerido, os poemas bíblicos são como um poço sem fundo, com uma abundância de sentidos e significados. E o Livro dos Salmos é a maior colecção de poesia na Bíblia.
Deixamos-vos com o salmo 51, sendo que a formatação do texto por nós adoptada visa colocar em realce o paralelismo entre linhas de que acima falamos (não sabemos, no entanto, se ao transferir este artigo para diferentes formatos digitais a formatação poderá ser alterada, se assim for pedimos desde já desculpa pelo facto).

Salmo 51

1 Ao diretor do coro. Salmo da coleção de David.
2 O profeta Natan procurou David, por ele ter estado com Betsabé.
3 Concede-me graça, Deus; pela tua bondade
        apaga os meus pecados, pela tua grande misericórdia!
4 Lava-me completamente das minhas transgressões;
        e purifica-me dos meus delitos.
5 Pois conheço as minhas faltas
        e o meu pecado está sempre diante de mim.
6 Somente contra ti pequei,
        fazendo o mal que tu condenas.
Por isso, tens razão em me julgar
        e é justo que me condenes.
7 Em transgressão fui concebido;
        e em ofensa a minha mãe me gerou.
8 Tu amas a verdade no fundo do coração
        e no íntimo me ensinas a sabedoria.
9 Limpa-me com hissopo e ficarei puro;
        lava-me e ficarei mais branco do que a neve.
10 Deixa-me ouvir os sons de alegria e contentamento;
        deixa que os ossos que esmagaste exultem.
11 Esconde a tua face dos meus pecados
        e apaga todas as minhas culpas.
12 Cria em mim, ó Deus, um coração puro;
        renova em mim um espírito firme.
13 Não me lances fora da tua presença
        e não retires de mim o teu espírito santo!
14 Torna a dar-me a alegria da tua salvação;
        sustém-me com um espírito nobre.
15 Deixa que eu ensine aos transgressores os teus caminhos
        e os pecadores voltarão para ti.
16 Livra-me do derramamento de sangue, ó Deus,
        Deus da minha salvação.
                E anunciarei a tua justiça.
17 Senhor, abre os meus lábios,
        para que a minha boca te louve.
18 Não te comprazes em que te traga sacrifícios;
        Não te deleitas em holocaustos.
19 Os sacrifícios para Deus são um espírito quebrantado.
        Ó Deus, tu não desprezas um coração arrependido e contrito.
20 Abençoa Sião segundo a tua bondade;
        reedifica os muros de Jerusalém.
21 Então te agradarás dos sacrifícios apropriados,
        dos holocaustos e das ofertas queimadas.
                Então serão oferecidos novilhos no teu altar.

José e Marta Pego e Pinto

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