Salmos de Lamento (continuação)

Antes de continuarmos a nossa análise dos salmos de lamento, convém referir que esta classificação básica em três tipos de salmos – Lamento, Acção de Graças e Louvor – cobre cerca de dois terços dos salmos, mas existem outros tipos de salmos que não se enquadram necessariamente nesta divisão. Como também devem estar recordados, havíamos dito que os motivos mais comuns dos salmos de petição ou lamento são cinco: invocação de Deus, um lamento ou queixa, uma expressão de confiança, uma petição e um louvor. Salientamos, todavia, que, para que estejamos perante um salmo de lamento, não têm necessariamente de existir todos estes motivos em simultâneo, nem sequer estarem presentes nesta ordem.

Comecemos então por analisar o motivo de confiança, que por norma introduz um ponto de viragem no salmo. Assim sendo, esta parte do salmo é usualmente introduzida através de “mas Tu…” referindo-se a Deus (p.ex. salmo 3:3), que transforma o sentimento de desespero do salmista numa esperança e que antecipa a súplica que se vai seguir. É nesta parte que o salmista explicita a razão para manter a sua fé, mesmo no meio da crise que está a atravessar. E é também aqui que ele vai expressar, não só a confiança na sua relação com Deus, mas sobretudo nos Seus atributos sublimes. São estes atributos -o Seu poder, a Sua compaixão e graça, a Sua paciência, o Seu amor abundante e fidelidade – que suportam a sua confiança no Senhor mesmo no meio de uma crise, cujas circunstâncias saem fora do seu controlo.

Um exemplo ilustrativo é o salmo 3, no qual o rei encontra confiança tanto no poder de Deus (“Mas tu, Senhor, és um escudo ao redor de mim”), como na sua própria eleição (“a minha glória e aquele que exalta a minha cabeça”). Há também variações deste modelo, como p.ex. o tão conhecido salmo 22, onde a primeira parte (vs. 1-10) consiste em duas estrofes que misturam o mais profundo lamento com a mais total confiança, até que por fim no v.19 encontramos o já mencionado “Mas Tu, ó Senhor”, que dá directamente lugar à petição e ao louvor.

Um outro caso interessante dentro deste género é o do salmo 139, que embora seja um salmo de lamento, dedica à confiança em Deus uma parte tão alargada que quase se torna num puro salmo de confiança. A este respeito podemos referir que alguns salmos constituem na sua totalidade salmos de confiança (p. ex. os salmos 16; 23; 62; 91; 121), sendo talvez o mais famoso destes o salmo 23.

Ao longo dos tempos alguns teólogos ficaram por vezes incomodados com o vigor com que o salmista afirma a sua inocência em algumas das secções de confiança em Deus nos salmos de lamento.

C.S. Lewis, tomando como exemplo o salmo 26 nas suas “Reflexões sobre os Salmos”, perguntava-se mesmo se afirmações como as que o salmista faz nos versículos 1 e 4, entre outras, não conduzirão a uma forma de farisaísmo? No entanto, para outros como Bruce Waltke, o salmista deve estar convencido da sua inocência para poder confiantemente pedir a Deus que o salve ou para que puna os seus inimigos. Se assim não fosse, ele sentiria que os seus sofrimentos eram merecidos e que não teria direito a qualquer tipo de libertação ou reivindicação (cf. salmo penitencial). Como este autor afirma, tal confiança só é possível para aqueles que não sentem qualquer condenação. Uma afirmação que, quando lida à luz do NT e da passagem de Rom 8:1 (“Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, … “) tendemos a entender retrospectivamente no VT. Mas seria este o entendimento que o salmista teria ao compor um salmo como este?

Um exemplo prático que nos permite acompanhar melhor esta linha de raciocínio é o do salmo 44, um salmo de lamento que está composto de uma forma magistral e que se reporta a um exército derrotado em batalha que vem até ao Templo expressar a sua dor e lamento junto de Deus. O salmo começa com uma expressão de confiança em Deus (vs. 1 -8), seguida de uma parte onde se expressa dor e lamento, (vs. 9-16) e de um protesto de inocência (vs. 17-22), terminando numa petição para que Deus aja em seu favor (vs. 23-26).

Seguindo o desenvolvimento do salmo é possível ver que para o salmista, se havia pecado, certamente que seria expectável que Deus o tornasse conhecido. O rei/líder pergunta no vs.20: “Se nos tivéssemos esquecido do nome do nosso Deus, ou estendido as mãos para um Deus estranho, não o teria descoberto Deus, visto que ele conhece os segredos do coração?” E uma vez que não receberam nenhuma voz profética de condenação da parte de Deus, ele e o seu exército contrapõem (vs.22): “Contudo, por amor de ti somos mortos o dia todo; somos considerados como ovelhas para o matadouro.” E como tal sentem confiança para rogar (vs.23): “Desperta ó Senhor! Por que dormes? Acorda! Não nos rejeites para sempre”. É esta sequência de pensamento que parece conduzir a oração do salmista em muitos destes casos e daí também a razão para ele expressar a sua confiança tão resolutamente quando sente que nada fez para merecer o que lhe aconteceu.

No entanto, e uma vez que referimos Romanos 8 acima, é curioso verificar que é o próprio apóstolo Paulo que no vs.36 deste capítulo cita o vs. 22 deste mesmo salmo: “…por amor de ti somos mortos o dia todo; somos considerados como ovelhas para o matadouro.”, mas desta vez referindo-se à comunidade apostólica que em batalha espiritual entrega a sua vida como mártir. A confiança que Paulo expressa, por contraponto à do salmista no caso acima, não se baseia na nossa inocência de facto, mas na tomada de consciência de que Deus em Cristo já “despertou”, ié. já agiu em favor dos que O temem. Como tal, somos considerados inocentes e nada nos poderá separar do seu amor.

A secção dedicada ao motivo de petição consiste tipicamente num apelo para que Deus se lembre e seja favorável para com o salmista ou para com a comunidade da qual faz parte, expressando-Lhe as suas necessidades e suplicando-Lhe que intervenha, através de expressões como: “Escuta!”, “Salva!”, “Castiga!”,etc. Noutros pontos, o salmista fala da justiça de Deus (termo que neste contexto deve ser entendido como fazer aquilo que é justo para com o seu parceiro de aliança). Seria inconsistente com o carácter de Deus esquecer o seu aliado e entregá-lo à sua sorte perante os seus inimigos (p. ex. Sl 4:1: ” Responde-me quando clamo, ó Deus da minha justiça. Na angústia dá-me alívio; tem misericórdia de mim e ouve a minha oração”).

Convém ainda mencionar o facto de dos cerca de 50 salmos de lamento que existem no Saltério em 35 deles ser feito um pedido específico a Deus para que puna os inimigos do salmista ou do povo. Sendo talvez o mais famoso e problemático destes salmos o 137. Por definição um salmo que contém imprecações, que é como estes pedidos de retribuição são conhecidos, é um onde o salmista ora a Deus para que o inimigo seja punido e o mal causado lhe seja retribuído. Estes salmos podem constituir um problema para o cristão, pois são inconsistentes com o ensino de Jesus (Mateus 5:39-42, 43-48; 6:14;). Esta é uma discussão que tem feito correr muita tinta e que seria impossível acompanhar aqui mesmo que fosse de forma breve.

Por fim, os salmos de lamento terminam geralmente com o motivo de louvor, louvor que a Deus é devido e que geralmente antecipa a resposta esperada à petição entretanto feita. Nesta expressão de louvor, embora feita num contexto de lamento, estão presentes dois conceitos com que pensamos ser importante terminar este estudo: a e a esperança. É à luz deste entendimento que se compreende que o livro dos Salmos seja chamado, como vimos já, o livro dos louvores.

Desta vez, estendemo-nos um pouco mais do que o habitual, mas o estudo dos Salmos é, de facto, muito rico e difícil de condensar em poucas linhas. Ficam aqui apenas algumas ideias para desenvolver um dia num outro contexto. Por fim, voltamos a convidar-vos a orar um salmo de lamento que, como dissemos, é praticamente um salmo de confiança na acção de Deus e que incorpora muito bem estas dimensões de fé e esperança.

Salmo 139

1 SENHOR, tu examinaste-me e conheces-me.
2 Conheces todos os meus movimentos; à distância, sabes os meus pensamentos.
3 Vês-me quando trabalho e quando descanso; conheces todas as minhas ações.
4 Mesmo antes de eu falar, já tu sabes o que vou dizer.

Senhor, Tu és Aquele que me sonda e me conhece melhor do que ninguém. Tu conheces-me até melhor do que eu própria, pois estavas lá desde a minha origem e consegues identificar as raízes de todos os meus medos e ansiedades, tal como sabes o meu potencial e cada uma das minhas capacidades.

Tu me vês por fora, andando de um lado para o outro, e por dentro, nas incursões e nos desvios dos meus pensamentos. Quando trabalho, estás ao meu lado. Quando descanso, repousas comigo.

Senhor, nada Te surpreende no meu falar e no meu agir, pois não?

5 Tu estás à minha volta por todo o lado; colocas sobre mim a tua mão protetora.
6 O teu conhecimento é para mim demasiado profundo; está para além da minha compreensão.

Ainda bem que Tu sabes tudo sobre mim, pois só assim me podes cercar com os Teus braços protetores. Conheces as minhas fraquezas para me amparares e as minhas forças para me deixares voar.

7 Onde poderia eu ir, para escapar a ti? Para onde poderia eu fugir da tua presença?
8 Se subisse ao céu, lá estarias; se descesse ao mundo dos mortos, lá estarias também.
9 Se eu voasse para além do oriente ou fosse habitar nos lugares mais distantes do ocidente,
10 também lá a tua mão desceria sobre mim, lá estarias para me segurar!
11 Se eu pedisse à escuridão para me esconder ou à luz para se transformar em noite à minha volta,
12 a escuridão não me ocultaria de ti e a noite seria para ti tão brilhante como o dia. Para ti a escuridão e a luz são a mesma coisa!

Não que eu queira fugir da Tua presença, ó Deus. Sei que só estou bem, quando junto a Ti. E… ainda assim, por vezes dou por mim em situações em que me sinto desamparada, perdida…

Mesmo aí, Tu me encontras, pois não há lugar onde Tu não estejas. Ainda que me distancie, Tu permaneces. E ainda que o meu espírito se cubra da mais densa escuridão, o Teu Espírito resplandecente me guia para a luz de um novo dia.

13 Foste tu que formaste todo o meu ser; formaste-me no ventre de minha mãe.
14 Louvo-te, ó Altíssimo, e fico maravilhado com os prodígios maravilhosos que são as tuas obras. Conheces intimamente o meu ser.
15 Quando os meus ossos estavam a ser formados, sem que ninguém o pudesse ver; quando eu me desenvolvia em segredo, nada disso te escapava.
16 Tu viste-me antes de eu estar formado. Tudo isso estava escrito no teu livro; tinhas assinalado todos os dias da minha vida, antes de qualquer deles existir.

Ó Deus, maravilhada Te louvo, porque Tu estavas lá desde o primeiro momento. Tu quiseste que eu fosse formada, nada Te escapou desde os primeiros segundos e me amaste desde esse instante.

Nada Te é oculto – nem a imensidão do Universo, nem os ínfimos detalhes do meu corpo.

Muito, muito obrigada, porque nada em mim aconteceu por acaso.

Tu estavas no início, estás agora e estarás à chegada também.

17 [Mas] para mim, que preciosos são os teus pensamentos, ó Deus! Que misterioso é o seu conteúdo.
18 Se eu quisesse contar, seriam mais do que a areia; e se pudesse chegar ao fim, ainda estaria contigo.

Sim, é por isso que Tu és Deus e eu sou eu. Tu és a sabedoria toda, a beleza perfeita, o amor completo. Eu sou aquela que existe para servir-Te, contemplar-Te, amar-Te…

19 Ó Deus, tira a vida aos que fazem o mal, afasta de mim os assassinos.
20 Eles falam maldosamente contra ti; os teus inimigos dizem mal de ti.
21 Ó SENHOR, como eu odeio aqueles que te odeiam! Como eu desprezo os que se voltam contra ti!
22 Odeio-os com toda a minha alma! Considero-os meus inimigos!

Por vezes também me sinto assim, impaciente e até vingativa… Muitas vezes me irrito e fico zangada com todos os que fazem o Mal neste mundo, com todos que agem como deuses e ignoram que Tu és o único Deus; que em vez de sabedoria, buscam confusão, em vez de beleza, fealdade e em vez de amor, egoísmo e ódio.

Ó meu Deus… também eu ajo assim, por vezes… Perdoa-me, Senhor!…

23 Examina-me, ó Deus, e conhece o meu coração; põe-me à prova e conhece os meus pensamentos.
24 Vê se eu sigo pelo caminho do mal e guia-me pelo caminho eterno.

No dia de hoje e sempre, sonda-me ó Deus, traz à luz o que o meu coração mantém oculto e os meus pensamentos em segredo. Ilumina o meu caminho e, se for preciso mudar de direção, eu mudo. Quero seguir contigo, Jesus, guiada pelo Teu Espírito, rumo à eternidade!

Amém.

José e Marta Pego e Pinto

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