Salmo 1

Os Salmos ocupam um lugar central nas Escrituras. Neste livro – que são vários – encontramos cânticos e orações, que expressam emoções e pensamentos bem humanos: solidão, abandono, gozo, êxtase, abatimento, desespero, desejo de vingança, arrependimento, confiança, fragilidade, revolta, esperança… São em grande parte lamentos – porque a vida e o mundo não são como deviam ser – mas são lamentos dirigidos a Deus e afirmam quem Ele é, o que já fez e o que prometeu fazer. Por isso, nada melhor do que a leitura dos Salmos para dar voz às nossas inquietações e à nossa súplica. Ao orarmos os Salmos, estaremos a orar de acordo com a Palavra de Deus, ao mesmo tempo que estamos já a escutar a Sua Palavra para nós.

Nestas próximas semanas, o convite para este nosso tempo de EBD virtual é que conheçamos um pouco mais acerca do Livro dos Salmos e, simultaneamente, o oremos devocionalmente. Ao fazê-lo, estaremos a participar numa tradição milenar de louvor e adoração através destes hinos. Estaremos a juntar-nos aos levitas no templo e aos judeus nas suas sinagogas locais, a Jesus e aos seus discípulos no primeiro século a. D., aos que na Idade Média os recitavam diariamente nos mosteiros e conventos e a tantos outros ao longo dos séculos.

A escolha do Salmo 1 para começarmos esta série deve-se não só ao seu lugar no Saltério, mas também aquela que se pensa ser a sua função, ou seja, um preâmbulo para o livro dos Salmos pronunciando uma bênção sobre todo aquele que se propõe ler, estudar e meditar nos seus ensinamentos. Trata-se daquilo que se costuma designar por um Salmo de Sabedoria ou um Salmo da Tora, tal como o são por exemplo os Salmos 19 e 119, pois falam da natureza da verdadeira sabedoria como estando ligada aos ensinamentos de Deus.

Aliás, é opinião de muitos estudiosos que os Salmos 1 e 2 formam em conjunto uma introdução ao livro dos Salmos, podendo a sua relação ser detetada, entre outras particularidades, pela já referida bênção que é pronunciada no v1 do Sl 1, mas também no v12 do Sl 2. Esta técnica habitual na literatura hebraica (a repetição de um tema ou expressão verbal no princípio e no fim de uma secção de texto) costuma designar-se por “inclusio” e visa sobretudo colocar em relevo aquilo que se encontra pelo meio. Assim sendo, o Salmo 1 interpela o indivíduo e o Salmo 2 a comunidade, com especial atenção para a importância do reconhecimento do Rei escolhido por Deus e em conjunto são como um portão de entrada que todo o peregrino tem de atravessar para iniciar a sua caminhada no livro dos Salmos em direção à cidade celestial.

Gostaríamos então de deixar à vossa reflexão este texto tão conhecido de todos nós e que franqueia a nossa entrada neste mundo maravilhoso dos Salmos…

Bem aventurado o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios,
 nem se detém no caminho dos pecadores,
  nem se senta na roda dos escarnecedores.

Antes tem o seu prazer na lei do Senhor
 e na sua lei medita dia e noite.
Pois será como uma árvore plantada junto a ribeiros de água,
 a qual dá o seu fruto na estação própria
  e cujas folhas não caem e tudo quanto fizer prosperará.

Não é assim com os ímpios,
 mas são como a palha que o vento espalha.
Pelo que os ímpios não se levantarão no julgamento
 nem os pecadores na assembleia dos justos.
Porque o Senhor conhece o caminho dos justos,
 mas o caminho dos ímpios perecerá.

Mesmo tratando-se de um Salmo relativamente pequeno é um texto muito rico e cheio de imagens sugestivas e fortes. Certamente que muitos pensamentos acorrem à nossa mente ao lermos e refletirmos sobre ele. No entanto, gostaria apenas de chamar a vossa atenção para três ideias que me tocam pessoalmente:

  1. No início do Salmo é interessante notar a presença de três verbos “andar”, “deter”, “sentar” que em conjunto permitem formar uma sequência narrativa de verso para verso realçando o perigo que a companhia dos ímpios se torne cada vez mais habitual e permanente. É quase como se este conselho dos ímpios exercesse uma força gravitacional que atrai o insensato com uma força cada vez maior para o seu meio.
    A este propósito vem-me à mente a citação que o apóstolo Paulo faz em I Cor 15:33 do poeta grego Menandro “As más companhias corrompem os bons costumes”.
    Não penso que o Salmo 1 se trate de um simples apelo para que nos afastemos de todos aqueles, cuja santidade nos oferece dúvidas, pois nem Paulo nem o próprio Jesus o fizeram e a este respeito a Bíblia está cheia de grandes ironias. No entanto, tratando-se este de um salmo sapiencial, vejo-o mais como um convite para discernirmos de onde provém e onde se encontra a verdadeira sabedoria.
  2. No v2 a palavra “medita” significa literalmente no hebraico murmurar, no sentido de pronunciar um som baixo, que é exatamente aquilo que faz alguém que lê um texto numa cultura onde não há leitura silenciosa. Gosto particularmente desta ideia, pois ela está ligada à possibilidade de oração constante, mesmo para aqueles que se encontram afastados fisicamente do Templo. Em contraponto, e na sequência da ligação entre os Salmos 1 e 2 que assinalamos antes, no v1 do Salmo 2 volta a aparecer a mesma palavra, só que agora é traduzida por “imaginar” (“imaginam coisas vãs”). Se, por um lado, o homem abençoado medita nos ensinamentos do Senhor, nesse ritmo de um murmúrio constante, por outro lado, os povos murmuram e congeminam pensamentos contrários aos desígnios de Deus. Um dá fruto e prospera, os outros são como palha que o vento leva.
  3. Por último, chamo a atenção para o jogo de ideias que é feito no v5 entre aquele que se assentou na roda dos escarnecedores no v1 e os ímpios e os pecadores que serão incapazes de se levantar no julgamento e na assembleia dos justos.
    É também interessante notar que o verbo “conhecer” no v6, tão nosso conhecido na linguagem bíblica (por tantas vezes ser usado para descrever a união entre homem e mulher) pode neste contexto, e seguindo a interessante sugestão de Robert Alter, ser traduzido por acarinhar/abraçar, expressando assim o carinho de Deus por todos aqueles que optam pelo caminho do justo. Este é o caminho que conduz à vida em contraponto ao caminho que leva a perecer…, o que, retoma a ideia tão grata nas Escrituras da necessidade de escolher entre dois caminhos…

Por hoje, é tudo. Quase tudo… Só falta meditarmos nesta Palavra, murmurando esta oração.

José e Marta Pego e Pinto

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