Na semana passada, tivemos a oportunidade de mencionar que o Livro dos Salmos é na verdade uma colectânea de 5 livros e falámos em traços gerais dos 2 primeiros volumes desta colecção. Esta semana, vamos prestar mais atenção ao Livro III, que vai do salmo 73 ao salmo 89.
Com este livro e em particular com o seu último salmo, o 89, atinge-se uma nova perspectiva. Este é o livro sombrio do Saltério. Aliás, é nesta parte que temos o salmo 88, o único salmo de lamento que mesmo no meio da aflição não termina numa nota de louvor a Deus, finalizando em vez disso com uma perspectiva de abandono e escuridão.
Embora não se saiba com exactidão quando e quais as circunstâncias em que cada salmo foi composto, a sua disposição na ordem actual parece reflectir uma certa ideia predominante em cada parte do livro. De uma forma geral, estes são salmos que abordam a derrota de Israel às mãos dos seus inimigos e lidam com uma perspectiva de exílio iminente ou já real. A aliança entre Deus e Israel, e em especial a aliança com David, é vista como fazendo parte do passado e como tendo sido quebrada.
Não é por acaso que dos 17 salmos que compõem este livro apenas um, o 86, é atribuído a David, consistindo numa oração de pedido de socorro a Deus, mas igualmente no reconhecimento de que não há outro como Ele e, por isso, o salmista expressa a sua confiança em Deus mesmo no meio da tribulação.
Predominam os salmos da colecção de Asaf e também alguns de Coré, oscilando entre a já nossa conhecida perspectiva individual (por exemplo os salmos 73, 77, 86, 88) e colectiva (por exemplo os salmos 74, 79, 80), mas quase sempre ligados ao tema da aflição experimentada por aqueles que sentem Deus longe de si e que clamam por salvação.
Existem ainda salmos que expressam confiança em Deus mesmo no meio do tumulto circundante (p.ex. 75 e 76), recordam a narrativa bíblica até ao estabelecimento de David como “pastor” de Israel (78), dão a perspectiva de Deus sobre o seu povo e sobre a razão do seu castigo, mas também apontam o caminho para a restauração ( 81 e 82), pedem retribuição para os inimigos de Israel (83), louvam o lugar da habitação de Deus (84), prestam tributo a Jerusalém (87) e expressam a confiança que Deus voltará a salvar tal como o fez no passado (85).
No final do livro, com o salmo 89, a impressão que nos é transmitida é a de uma aliança lembrada, mas falhada. A aliança de Deus com David, introduzida no salmo 2, não se desenvolveu de acordo com as grandes expectativas do povo e a combinação dos 3 primeiros livros termina com um grito angustiado dos descendentes de David. Mas nem tudo está perdido, ainda há esperança…
Deixamos-vos hoje com uma oração inspirada no salmo 77.
Salmo 77
1. Elevo a Deus a minha voz e clamo, elevo a Deus a minha voz, para que me atenda.
2. No dia da minha angústia, procuro o Senhor; erguem-se as minhas mãos durante a noite e não se cansam; a minha alma recusa consolar-se.
Senhor, para Ti me volto e sem cessar clamo a Ti. A minha voz está fraca, mas continuo a ir a Ti, ó Deus, suplicando que me escutes! Escuta-me, por favor…
O meu espírito está angustiado. Noite após noite, ajoelho-me perante Ti e derramo aos Teus pés tudo aquilo que mantém o meu coração apertado, mas não Te ouço…
3. Lembro-me de Deus e passo a gemer; medito, e me desfalece o espírito.
4. Não me deixas pregar os olhos; tão perturbado estou, que nem posso falar.
Sempre que vou à Tua presença, em vez de encontrar forças, desanimo. Tenho-Te buscado, mas em vez de esperança, encontro inquietude; em vez de paz, agitação. Não consigo dormir, mas também já nem consigo orar.
Estou vazia… Fiquei sem palavras.
5. Penso nos dias de outrora, trago à lembrança os anos de passados tempos.
6. De noite indago o meu íntimo, e o meu espírito perscruta.
Esgotei todas as minhas palavras e Tu…, Tu trazes à minha memória os tempos idos… , os tempos em que eu tinha a certeza da Tua presença, do Teu poder, do Teu amor. Levas-me por caminhos do passado dos quais já quase me esquecera… Mas Tu não queres que eu me esqueça, pois não, Senhor?
Conhecendo-Te, oh Pai, como conheço, sabendo que Tu não mudas e tendo experimentado o Teu imenso amor na minha vida, Tu queres que eu me pergunte:
7.Rejeita o Senhor para sempre? Acaso não torna a ser favorável?
8. Cessou perpetuamente a sua graça? Caducou a sua promessa para todas as gerações?
9. Esqueceu-se Deus de ser benigno? Ou, na sua ira, terá ele reprimido as suas misericórdias?
10.Então, disse eu: isto é a minha aflição; mudou-se a destra do Altíssimo.
Como poderias deixar de derramar o Teu favor e a Tua graça para com os Teus servos? Como encerrarias a Tua bondade e a Tua compaixão, Tu que és Deus de Amor? Tu, que Te deste por nós quando ainda éramos ímpios, pecadores, inimigos Teus, esquecer-te-ias de nós agora quando clamamos a Ti, Senhor?
Tu me fazes recordar quem Tu és, rebobinas os teus feitos e a tua ação poderosa e fiel ante os meus olhos e renovas a minha mente…
11. Recordo os feitos do Senhor, pois me lembro das tuas maravilhas da antiguidade.
12. Considero também nas tuas obras todas e cogito dos teus prodígios.
(Em silêncio – e com tempo – medito nas obras de Deus desde o início)
13. O teu caminho, ó Deus (’elohim), é de santidade. Que deus (’el) é tão grande como o nosso Deus (’elohim)?
14. Tu és o Deus que operas maravilhas e, entre os povos, tens feito notório o teu poder.
Senhor Deus, santo e poderoso és! Não há ninguém como Tu!!
Mergulhada na minha angústia, afogava-me em queixumes e sufocava a lembrança da Tua fidelidade. Presa pelo sentimento de impotência e desespero, não permitia que o poder do Teu Espírito operasse em mim. Mas Tu és grande e a Tua vontade não se detém perante os obstáculos…
15. Com o teu braço remiste o teu povo, os filhos de Jacó e de José.
16. Viram-te as águas, ó Deus; as águas te viram e temeram, até os abismos se abalaram.
17. Grossas nuvens se desfizeram em água; houve trovões nos espaços; também as suas setas cruzaram de uma parte para outra.
18. O ribombar do teu trovão ecoou na redondeza; os relâmpagos alumiaram o mundo; a terra se abalou e tremeu.
19. Pelo mar foi o teu caminho; as tuas veredas, pelas grandes águas; e não se descobrem as tuas pegadas.
20. O teu povo, tu o conduziste, como rebanho, pelas mãos de Moisés e de Arão.
Que Deus és Tu, que até os mares e os céus Te obedecem?…
Tu és Deus Altíssimo, El-Shaddai, Criador de todas as coisas, nos céus e na terra.
Mas também és o Deus da promessa e da aliança, que trouxeste o Teu povo da escravidão para a liberdade e lhe deste uma terra e um nome.
Tu és o Deus que nunca quebraste o teu pacto e que, embora tendo nós incumprido a nossa parte e falhado vezes sem conta em andarmos contigo, Tu assumiste a nossa culpa, tomaste o nosso castigo e nos fizeste co-herdeiros com Cristo do Teu reino…
Tu és o Deus que nos amas profundamente e que nos concedes o privilégio de fazer parte da Tua obra de restauração deste mundo e de reconciliação do ser humano contigo.
Tu nos tens guiado e guiarás sempre, pois és o nosso Bom Pastor.
Perdoa se me esqueço dos Teus caminhos, perdoa a minha pouca fé…
Tu és o meu pastor… de nada preciso, Senhor, a não ser de Ti!
Amém.
José e Marta Pego e Pinto